quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O fogão a lenha no semiárido do Piauí: métodos tradicionais e alternativas tecnológicas eficientes*


        O uso da lenha como combustível é uma prática milenar que, aos poucos, vem perdendo espaço frente ao consumo crescente de derivados de petróleo e gás natural. Entretanto, em muitos lugares do mundo, em especial no meio rural de países em desenvolvimento, a lenha ainda continua sendo a principal fonte energética, sendo usada principalmente para a cocção de alimentos.
        No Brasil, essa realidade não é diferente. Segundo dados do Balanço Energético Nacional de 2008 a lenha e o carvão vegetal representam 12% da matriz energética brasileira (MME, 2008). No entanto, levando-se em conta a dificuldade em obter dados sobre o consumo de lenha no País, principalmente em relação ao uso residencial em regiões remotas, esse número pode ser ainda maior. Este produto dendroenergético é utilizado, principalmente, para produzir carvão vegetal nas carvoarias e para o preparo de alimentos nas residências no meio rural.
      A combustão da lenha para a cocção de alimentos é, ainda hoje, uma prática comum no Brasil e em especial no Piauí, principalmente no meio rural, onde esse insumo é muitas vezes a principal fonte energética local, sendo encontrada disponível na natureza para coleta manual e sem ônus financeiro para o usuário. Para isso, utiliza-se o fogão a lenha como alternativa tecnológica e energética popular para  o preparo de alimentos.
          O uso da combustão da biomassa, em especial a madeira ou lenha, para a cocção de alimentos é uma das alternativas energéticas mais antigas e difundidas da humanidade. Desde que o homem domesticou o fogo e passou a fabricar seus utensílios com metal e argila, o cozimento de seus alimentos tornou-se uma prática comum e, por conseguinte, alterou socioculturalmente seu modo de vida. Desta forma, apesar da evolução cultural e tecnológica que os seres humanos vêm sofrendo nas últimas décadas, o uso do fogão a lenha como utensílio doméstico popular destinado à cocção de alimentos, principalmente no meio rural, continua sendo uma prática bastante comum na atualidade, em várias partes do mundo.
Vários são os modelos de fogão a lenha utilizados para a cocção de alimentos no Brasil e no mundo. Estes variam de região para região, sendo normalmente adaptados para as necessidades locais, de acordo com os materiais de fabricação disponíveis e as necessidades de uso.

                          Figura 1 - Modelos de fogão a lenha tradicionais no semiárido piauiense
  
Um dos modelos mais antigos de fogão a lenha, que até hoje é utilizado, é o fogão de três pedras (ou “trempe”, como é conhecido no semiárido piauiense), sendo este o mais rudimentar e prático destes, no entanto, apresenta-se com baixíssimo rendimento energético e alta emissão de fumaça e particulados. Outro modelo bastante comum no semiárido piauiense é o modelo feito de alvenaria, cimento, argila e chapa metálica furada para duas ou três panelas, que não apresenta forno e nem chaminé. Este modelo, por não possuir chaminé, além de apresentar um baixo rendimento energético, também emite uma grande quantidade de fumaça e particulados para o ambiente interno, podendo causar danos à saúde de seus usuários a médio e logo prazo. 

                          Figura 2 -  Fogão a lenha tradicional e de três pedras ou “trempe”.
  
Um dos grandes problemas relacionado ao uso desses fogões tradicionais em domicílios rurais é a baixa eficiência energética que eles apresentam, geralmente inferior a 10% (SANGA, 2004). Associado a isso está a necessidade de um maior consumo de madeira, que pode levar a uma maior devastação da vegetação nativa e conseqüentemente provocar erosões no solo que podem favorecer o processo de desertificação, problema já encontrado no sul do Piauí, em particular na Região de Gilbués.
Entretanto, o maior problema que o uso deste equipamento pode provocar está associado à combustão incompleta da madeira, que, por sua vez, emite gases e partículas poluentes para o ambiente da cozinha, que são muito nocivos à saúde humana, dos quais podemos destacar: insuficiência respiratória, doenças oftalmológicas, bronquite crônica e até câncer no pulmão. Esta atmosfera, à qual esses homens, mulheres e crianças do campo estão sujeitos, no interior de suas residências, pode ser comparada à poluição de grandes cidades e ao caso de fumar vários maços de cigarro por dia (BORGES, 1994). Além dos problemas de saúde já mencionados que a emissão de fumaça pode ocasionar, outro problema menos preocupante, mas que faz a dona de casa padecer, é o enegrecimento das panelas, que, além de dificultar a lavagem, pode atuar como isolante térmico, fazendo com que o consumo de lenha cresça ainda mais.
Apesar de tudo isso, com o passar dos séculos, pouco se evoluiu na fabricação deste equipamento tão importante na vida de milhões de pessoas. Isso se deve em parte à falta de estudos científicos sobre o tema e sua respectiva difusão. No entanto, nos últimos 20 anos, diversos pesquisadores e instituições em várias partes do mundo têm trabalhado no desenvolvimento e difusão de modelos de fogões a lenha mais eficientes e menos nocivos ao homem e ao meio ambiente, de forma a possibilitar um aproveitamento mais racional deste importante instrumento energético popular (NOGUEIRA & LORA, 2003).
Motivados por uma preocupação ambiental e de saúde pública, a partir da década de 80, em praticamente todos os continentes do mundo, em especial nos países em desenvolvimento, foram criados programas governamentais e não governamentais de desenvolvimento e disseminação de fogões de queima mais limpa e eficiente. Dentre os de maior destaque estão os exemplos da China e da Índia, onde milhões de pessoas foram beneficiados (SANGA, 2004).
No Brasil, dentre os vários modelos já estudados que apresentam resultados satisfatórios quanto à redução de fumaça e melhor eficiência, está o fogão a lenha de combustão limpa e de baixo custo, desenvolvido por um grupo de pesquisadores brasileiros. Seu funcionamento tem como base o princípio de queima invertida, desenvolvido na Holanda, que proporciona uma combustão mais completa e limpa (MARTINS ET. AL., 1992).
 Figura 3 - Fogão a lenha de combustão limpa. (Fonte: Borges, 1994)

 Contudo, no Brasil, pouco se tem feito para disseminação destas tecnologias de fogão eficientes, exceto em alguns casos pontuais. Dentre estes, podem ser destacados a atuação do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energia Renováveis (IDER) com atuação no semiárido nordestino, em especial no Estado do Ceará. “Em 2006 e 2007, com o apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e da Global Village Energy Partnership (GVEP), o IDER já havia instalado 100 unidades em Itapipoca, Trairi e Pentecoste. Os resultados levaram o Governo do Estado do Ceará a financiar mais 22 mil unidades, a serem instaladas até o final de 2009. Até agora, em torno de 5.300 fogões ecoeficientes já foram implantados” (RTS, 2009).  Para o projeto o IDER baseou-se em um modelo adaptado do Fogão Lorena (Guatemala) (KÜSTER ET. AL., 2006). Quanto ao Piauí, pouco ou quase nada se tem feito nesse sentido.
             Figura 4 - Fogão a lenha ecoeficiente. Fonte: http://www.ider.org.br/projetos/fogoes-ecoeficientes

Tendo em vista este cenário e a grande popularidade do fogão a lenha no meio rural do Estado do Piauí, bem como os principais problemas relacionados ao seu uso, Moraes (2008) realizou uma pesquisa de campo sobre a utilização desse importante utensílio doméstico no semiárido piauiense. A seguir, será apresentado de forma sucinta os principais resultados desta pesquisa.
O modelo mais comum que a pesquisa revelou é construído no interior da cozinha, com tijolos, argila e metal sobre uma base elevada feita de tijolos, cimento e areia. Assim, são armadas sobre a base duas pequenas paredes de tijolos para sustentar a placa de metal ou simplesmente a panela diretamente, sendo que, no espaço entre as pequenas paredes e a placa ou a panela forma-se a câmara de combustão da madeira. No entanto, para o controle da intensidade do fogo não é utilizado nenhum dispositivo especial, somente através do manejo da lenha no fogão.
Assim como na pesquisa de Botelho (1989), feita no Rio de Janeiro, este estudo no semiárido do Piauí, mostrou uma grande penetração do fogão a gás (80% do total dos domicílios pesquisados) nos lares do sertanejo, sendo destinado, no entanto, unicamente ao preparo de alimentos mais rápidos e mais urgentes, como o café da manhã (leite, café, cuscuz, ovo, tapioca, etc) e chás. Desta forma, todas as residências pesquisadas utilizam o fogão a lenha todos os dias, usando-o para a cocção de quase todos os alimentos, principalmente para o preparo do almoço e do jantar.
            Quanto a obtenção da lenha, a coleta de troncos, galhos e gravetos secos pelos donos da casa, de uma a três vezes por semana, em locais próximos das residências (menos de 500 m de distância), são as formas mais comuns de obtenção da lenha para o uso domestico no fogão. Quando as distâncias são maiores, recorre-se à tração animal, como o jumento, por exemplo. Das mais de dez espécies citadas pelos sertanejos na pesquisa, as mais utilizadas são: “mameleiro”, “sabiá” e “canela de velho”.
A pesquisa revelou ainda que 70% dos entrevistados consideram como aspectos negativos no uso do fogão a lenha o calor no ambiente e o perigo às crianças, isto é perfeitamente compreensível, tendo em vista que a maioria dos fogões pesquisados são internos e apresentam alturas inferiores a 1 m. No entanto, o maior problema quanto ao uso do fogão a lenha, para os usuários, é certamente a emissão de fumaça e particulados para o ambiente, além disso o enegrecimento das panelas e das paredes devido à emissão de fumaça também foi citado como aspecto negativo. Desta forma, como a maioria dos fogões pesquisados não apresenta chaminé externa e nem um processo mais adequado e eficiente para combustão da lenha, de forma a proporcionar uma combustão mais completa, este problema torna-se também compreensível.
Quanto aos motivos que levam os usuários a continuar usando esse utensílio, constatou-se que é realmente por fatores econômicos, pois 70% concordam que utilizam o fogão a lenha por ele ser mais econômico, sendo que 30% declararam não poder comprar o Gás Liqüefeito de Petróleo (GLP) e 20% por não possuírem o fogão a gás. 
Assim, o uso do fogão a lenha no semiárido piauiense para cocção de alimentos, principalmente na zona rural, é uma prática bastante comum. Este fenômeno está associado não apenas a fatores econômicos, mas também a aspectos sócio-culturais, além disso, o uso de materiais locais (tanto para construção como para combustível) e de baixo custo favorece ainda mais essa prática.
No entanto, apesar da importância deste equipamento doméstico na vida do sertanejo, faltam estudos mais detalhados sobre o tema, além da ausência de programas governamentais e não governamentais de grande alcance que incentivem a pesquisa e o desenvolvimento de modelos mais eficientes e menos poluentes, bem como a sua disseminação na zona rural. Assim, esse problema não é apenas de cunho cientifico-tecnológico, mas também sócio-ambiental e necessita de urgente intervenção governamental. Além disso, é de fundamental importância que associado a programas de disseminação do fogão a lenha ocorra um trabalho de educação e preservação ambiental, principalmente em parceria com escolas e sociedade.
 
 Referências bibliográficas

BORGES, T. P. F. Fogão a Lenha de Combustão Limpa. pp. 116. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/SP/Brasil,             1994.
BOTELHO, T. M. B. Tecnologia Popular e Energia no Setor Residencial Rural – Um Estudo Sobre Fogão a Lenha. pp. 261. Dissertação de Mestrado. Coordenação do Programa de Pós-graduação de Engenharia (COPPE). Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/RJ/Brasil, 1986.
KÜSTER, A. MARTÍ, J. F. MELCHERS, I. (organizadores). Tecnologias Apropriadas para Terras Secas - Manejo sustentável de recursos naturais em regiões semi-áridas no Nordeste do Brasil – Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, GTZ 2006. 212p.
MARTINS, G.; Barros, I. F. R.; Lima, M. D. Design Social Vs Novas Tecnologias. Anais do Workshop Internacional Renovação Tecnológica, Curitiba, PR,          1992.
MORAES, Albemerc Moura de; MARTINS, G. ; MORANTE, Federico. O uso do fogão à lenha no semi-árido piauiense: um estudo de caso. In: 7º Congresso internacional sobre geração distribuída e energia no meio rural (agrener), 2008, Fortaleza - Ceará.
MME-EPE. 2008. Balanço Energético Nacional 2008: ano base 2007, Ministério de Minas e Energia – MME, Empresa de Pesquisa Energética – EPE
NOGUEIRA, L. A. H. LORA, E. E. S. Dendroenergia: Fundamentos e Aplicações. 2 ed. Rio de Janeiro: Interciência, 2003.
SANGA, G. A. Avaliação de Impactos de Tecnologias Limpas e Substituição de Combustíveis para Cocção em Residências Urbanas na Tanzânia. pp.115. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Engenharia Mecânica. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas-SP, 2004.
RTS. Rede de Tecnologia Social. Disponível em: < http://www.rts.org.br/noticias/ecofogoes-para-salvar-vidas > Acesso: 25 de maio de 2009.
                                                                          
                                                      



*Artigo publicado orinalmente no AGRENER 2008 por Albemerc Moura de Moraes e disponível em: www.nipeunicamp.org.br/agrener/anais/2008/Artigos/80.pdf